Diante da tragédia mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o isolamento das pessoas, como a medida mais eficaz para conter a rápida proliferação do vírus, a fim de evitar o colapso do sistema de saúde dos países, que não teria como atender todos os pacientes graves infectados. Nessa linha seguiram todas as lideranças mundiais. No Brasil, após o decreto de calamidade pública aprovada pelo Congresso Nacional, alguns governadores de estados membros e prefeitos decretaram o isolamento das pessoas, com o fechamento das escolas e dos estabelecimentos comerciais que exercem atividades não essenciais, bem como recomendação para que os cidadãos evitem sair de casa, exceto por extrema necessidade. Na contramão das orientações da OMS, o Presidente da República do Brasil, em pronunciamento em cadeia nacional no dia 26 de março de 2020, incentivou a população a sair do isolamento e seguir vida normal, com o retorno às escolas e ao trabalho, a fim de evitar graves prejuízos econômicos. Na esteira desse posicionamento, no dia seguinte, 27 de março de 2020, declarou à imprensa: “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”
Ele se referiu ao artigo 486 da CLT e é sobre esse dispositivo legal e sua aplicação no direito do trabalho, que irei discorrer.
Estabelece o artigo 486 da CLT, verbis:
“Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
1º – Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.
2º – Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.
3º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.”
Esse dispositivo legal se refere ao que no direito denominamos de “Fato do Príncipe”, que é um instituto jurídico que prevê uma indenização pelo Estado aos prejudicados pela sua atuação extracontratual, que acaba por influir na relação jurídica previamente estabelecida, de maneira a quebrar o equilíbrio econômico-financeiro existente. Sua aplicação é mais comum nos contratos administrativos, mas incide em outros ramos do direito, como no do trabalho.
Nesse sentido, os decretos editados para o isolamento da população, com o fechamento de escolas, parques, estabelecimentos comerciais e, em consequência, pesadas implicações econômico-financeiras para as pequenas e médias empresas e aos trabalhadores (registrados, informais, autônomos etc.) constituem fato do príncipe? A norma explicitada anteriormente tem o alcance declarado pelo presidente? A questão é controvertida.
Filio-me à corrente que entende que não, que os decretos governamentais de quarentena não constituem fato do príncipe e, consequentemente, o artigo 486 da CLT não tem o alcance declarado pelo presidente. Fundamento. O fato do príncipe pressupõe uma atuação estatal unilateral e discricionária, ou seja, entre algumas opções, o administrador público escolhe aquela que causa prejuízos a terceiros. É o que ocorre, por exemplo, quando o prefeito de uma cidade opta por construir uma grande avenida em determinado local, a despeito de existirem outros, e desapropria imóveis onde há estabelecimentos comerciais que, em consequência, serão fechados. Não é, todavia, o caso atual. Diante das gravíssimas consequências da pandemia do coronavírus e de sua disseminação sem controle, como lemos e ouvimos diariamente nos noticiários, com milhares de mortes mundo afora e no Brasil, sobretudo em países que desprezaram o isolamento quando os casos de infectados ainda eram poucos (Itália, Espanha, EUA), entendo que a medida adotada pelos governadores dos estados foi a única possível, dentro de um estado de calamidade pública, para preservar a vida humana, sem a qual economia alguma faz sentido. Vale dizer, os governantes não tiveram discricionariedade, ou seja, escolha, para adotar outra providência senão a do isolamento das pessoas, em detrimento da economia, diferentemente do prefeito do município do exemplo anteriormente explicitado, que poderia ter escolhido construir a avenida em outro local. Nem se argumente que o incentivo do presidente à circulação de pessoas, abertura de escolas e estabelecimentos comerciais, representa uma opção, pois as empresas são compostas por pessoas e sem elas, deixam de existir, ou seja, não há como escolher colocar a salvo algo (empresa) que depende de outras (pessoas) que estarão em grave risco de existência. É fato que, governantes que primaram pela segurança e pela vida de seu povo, decretaram o isolamento e, assim, obtiveram êxito no controle da disseminação do vírus, como verificamos em alguns países asiáticos. Neles, a economia irá se reerguer mais rapidamente, pois foram preservadas as vidas das pessoas que compõem as empresas. Por essa razão a posição do presidente não se configura uma opção.
Assim, entendo que o artigo 486 da CLT não se aplica às eventuais relações contratuais de trabalho quebradas abruptamente pelos decretos governamentais editados no estado de calamidade pública, de maneira que, em eventual reclamação trabalhista, a empresa não tem como pleitear a inclusão na lide do ente estatal reputado responsável pela paralisação do trabalho. No entanto, há os que entendem que os decretos dos governadores possibilitam a indenização prevista no artigo 486 da CLT, pois são atos de uma autoridade estadual, que paralisou temporária ou definitivamente o trabalho (interpretação literal do dispositivo). Nesse caso, muita atenção quanto à questão da indenização estabelecida no artigo 486, pois não se refere a uma indenização latu sensu, de todo e qualquer prejuízo experimentado pela rescisão do contrato de trabalho (aviso prévio, férias acrescidas de 1/3 constitucional, saldo de salário, décimo terceiro salário), senão apenas da multa rescisória dos 40% do FGTS.
Saliente-se que o artigo 486 da CLT é bem claro ao autorizar o empregador a invocá-lo em sua defesa, a fim de integrar no polo passivo a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho. Assim, o empregado não poderá ingressar com reclamação trabalhista contra os entes estatais, ainda que em litisconsórcio passivo com a empresa, pois não fizeram parte da relação de trabalho. Caso assim proceda, é bem provável que haverá o reconhecimento da ilegitimidade passiva pelos magistrados.
Como se vê, muitos são os posicionamentos dos doutrinadores, advogados e magistrados, que, em última análise, serão os que decidirão a respeito da responsabilidade estatal em debate. Por essa razão, cumpre aos advogados o dever de orientar e esclarecer os seus clientes sobre os eventuais riscos e prejuízos decorrentes da adoção de cada entendimento.
Fonte: Lilian Brabo Consultoria Acadêmica